sexta-feira, 14 de maio de 2010

extratos II

Tem um menino que perdeu a mãe no fim do ano passado.
Quando ele vem à biblioteca com a gola torta, os cadarços mal enfiados nos buraquinhos do tênis eu me reparto em mil.
E o olho dele sempre tem uma tristeza funda. Tão funda quem nem um olho de vidro iria driblar.
De tanto não saber para onde olhar.
De tanto doer sem curativo.
De tanto eu saber dele sem ele saber que eu sei.
Agora eu contrabandeio/sequestro/furo fila com todos os livros mais procurados pela turma dele. Todos sempre estão na vez dele. Eu invento. Me perco. Alguns até xingam. Mas de vez em quando ele sorri pra mim.
Eu faço as minhas pequenezas para a grandeza da vida não me matar.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

extratos

a menina dos cabelos vermelhos voltou.
foi. sofreu. voltou.
reconheci ela de costas,- pelos cabelos - e demorei alguns segundos para ter coragem de olhar para o seu rosto. tinha medo que a alegria pudesse ter desbotado.
mas, como um puro sangue, ela ainda tem os olhos felizes.
ela acredita.
eu acho tão bonito.
tomara que nada mais gele os cabelos de puro fogo dela.
tomara que antes de qualquer adulto fechar uma mala, abrir uma janela e comprar uma passagem se lembre que os sonhos da menina estão naquela única pessoa que lhe dá segurança e não nas estradas da vida.
seu sorriso colorido embaixo dos seus cabelos ruivos gritam que ela prefere ter em quem ficar do que um lugar para onde ir. tomara quem eles escutem o seu grito também.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

minha pequena lista de grandes invejas

Invejoso

Arnaldo Antunes


O carro do vizinho é muito mais possante
E aquela mulher dele é tão interessante
Por isso ele parece muito mais potente
Sua casa foi pintada recentemente

E quando encontra o seu colega de trabalho
Só pensa em quanto deve ser o seu salário
Queria ter a secretária do patrão
Mas sua conta bancária já chegou no chão

Na hora do almoço vai pra lanchonete
Tomar seu copo d'água e comer um croquete
Enquanto imagina aquele restaurante
Aonde os outros devem estar nesse instante

Invejoso
Querer o que é dos outros é o seu gozo
E fica remoendo até o osso
Mas sua fruta só lhe dá caroço

Invejoso
O bem alheio é o seu desgosto
Queria um palácio suntuoso
mas acabou no fundo desse poço

Depois você caminha até a academia
Sem automóvel e também sem companhia
Queria ter o corpo um pouco mais sarado
Como aquele rapaz que malha do seu lado

E se envergonha de sua própria namorada
Achando que os amigos vão fazer piada
Queria uma mulher daquelas de revista
Uma aeromoça, uma recepcionista

E quando chega em casa liga a tevê
Vê tanta gente mais feliz do que você
Apaga a luz na cama e antes de dormir
Fica pensando o que fazer pra conseguir

Invejoso
Querer o que é dos outros é o seu gozo
E fica remoendo até o osso
Mas sua fruta só lhe dá caroço

Invejoso
O bem alheio é o seu desgosto
Queria um palácio suntuoso
mas acabou no fundo desse poço
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Eu invejo quem não leva trabalho para casa, quem come e não engorda, que trabalha menos e ganha mais dinheiro, quem não fica esperando nas filas da vida, quem diz que vai fazer e esquece, quem não tem horário, quem pega uma cor com facilidade, quem sabe tocar um instrumento musical, quem sabe línguas...