escritor é um fingidor
por Patrícia 'Ticcia' Antoniete - de Porto Alegre -
A vida não é literatura e a recíproca, meu bem, é verdadeira. Não há literatura que espelhe seu autor, felizmente, por mais que para me certificar de que eu estou viva, precise escrever e escrever, me traduzir e me reinventar, me embaralhar e me perder e me achar, muitas vezes torta e deformada, naquele mesmo espelho.
Literatura não é biografia - não se engane - e, no entanto, é certo que não há ali nenhuma vírgula que não tenha sido tirada do mais fundo de mim. Afinal, qual seria a matéria prima, que não tudo o que sinto, experimento, fagocito, apreendo, absorvo? Mas ainda assim o texto não sou eu, nem fala de mim, não se iluda. A palavra é outra matéria desprendida de mim, que me honra e me eleva, me justifica, me apascenta a carne, me destrói e me acumula, me inverte, me aterroriza, me instiga, me joga no vento, me umidifica e me fertiliza, me transforma. A palavra me amplifica e me diminui, mistura o de mim com tudo que a mim chega e reverbera, com o que posso me permear e me urdir, com tudo que já sou capaz de acolher.
Quando escrevo, deixo de rastejar e de doer. Quando escrevo, sou coisa inapreensível, sem rosto, sem lugar, nem tempo, movo-me acima de mim, construo algo que não tenho, em outra freqüência, outra cor, outro foco e contraste. Quando escrevo, escrevo para não me ser, para me des-ser e, fora de mim, me ver de longe, decuplicada, desmantelada, confundida, decomposta em partes e rearranjada em outras que não são eu, que sofrem, riem, mentem, voam, vomitam sangue, morrem, negam, entristecem, roubam, fodem, amam, dizem a verdade, são cruéis, trucidam, nascem outras, quantas e tantas vezes quantas me apetecerem.
Não espere me encontrar no texto, não me prenda, não busque no ar a minha forma, ainda que ali eu tenha dito que sou eu, ainda que eu precise que você acredite que me encontrou. Não me faça refém das asas que eu custei tanto a saber como usar, não me escravize no incomensurável outro, não tente me achar onde eu preciso mesmo é me perder.
quinta-feira, 12 de junho de 2008
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