domingo, 3 de agosto de 2008

a samambaia voadora

(a ficção da literatura é uma desculpa para aqueles que usam as palavras para ocultar seus crimes.)

ela nunca teve grande simpatia pelas atividades domésticas.
apesar de ser uma ótima mãe pela virtude da escuta herdada de sua própria mãe e pelos conselhos estranhos, inspirados nos livros cult que sempre leu.

deixava o filho na creche e corria pro cinema, pois a temperatura da mamadeira e a promoção de fraldas para ela sempre foram papo furado. ele nunca se importou, pois a alegria dela sempre esteve entre as suas preferências.

a família ia bem melhor que tantas outras que fazem de conta que vão bem.

bem cedo teve as trompas ligadas, mas nunca se desligou do mundo. muito pelo contrário.

o fato da samambaia ela tinha esquecido, até o dia que isabella tinha deixado de ser apenas uma marca de bolacha para virar um caso.o caso passando na tv e ela sintonizou o seu passado.

um dia daqueles em que nada dá certo. o arroz queima. a bateria do carro se vai. o marido se atrasa. um criança gripada. a outra com a bunda assada. e o outro chutando a barriga que ela não mais conseguia acomodar a todo o instante. sim, era hora das crianças irem para a cama, mas o desfile de algum time não dava trégua na rua. espiou pela janela e da fila nem se via o fim. ligou a TV e mais inflação.
no seu minuto de loucura que não costumava reprimir, olhou os filhos chorando e não teve dúvidas: arremessou a samambaia pela janela. não, não pôde sentir o alívio do seu ato, pois ao invés da folhagem atingir o chão, atingiu os fios de alta tensão gerando um fogaréu.
ligou para o marido, confidenciado o crime, ele veio rápido e devagar eles se deram conta que nada tinha acontecido, apenas a explosão em todos os sentidos. apenas a explosão daqueles que não se permitem morrer de câncer. daqueles que não se limitam a sorrir amarelo.

ela nunca pensou no quanto ele era capaz de entendê-la, pois a sua capacidade de compreendê-la (muitas vezes sem entendê-la de fato) já lhe dava um cúmplice no crime perfeito da vida.
naquela noite ela não precisou de remédio para dormir e ele dormiu uma noite sem sonhos. bastavam as cores do dia, da noite ele só quis o silêncio.

depois da clareza que só é promovida pela escuridão de uma noite de sono, ao saírem do prédio, riram da samambaia estatelada no chão e seguraram com mais força as crianças no colo do braço.

até hoje ninguém entende porque para cada amiga grávida ela dá uma samambaia de presente. sempre. e ele faz questão de ir junto à floricultura escolher. sempre lembrando ela de levar junto também as correntes para pendurar a folhagem.

tem gente que diz que é até promessa. mas, só aqueles que sabem que a vida ultrapassam todos os entendimentos não acreditam nestas bobagens.

Um comentário:

Anônimo disse...

Literatura é isso: ficção e realidade.
Ficou ótimo.
Tu sempre me surpreende!!!
Bj