terça-feira, 26 de abril de 2011

...

eu não tive câncer, ainda tenho pai e mãe, as minhas contas estão em dia, ainda me sobra grana no fim do mês, mas o meu fim do mundo sempre chega. eu não gosto da comida que eu faço e mesmo assim prefiro almoçar em casa. eu escrevo porque não ouso gritar. eu caminho pelas ruas e não vejo as pessoas. acho que estou a salvo de um tsunami e de uma tuberculose. mas, eu me desmancho por coisas que as pessoas não enxergam. me dói a criança que atravessa sozinha e na sorte uma avenida. me dói o chinelo de dedo do homem que passa por mim num dia frio. me perturba tantas pessoas engessadas em suas bobagens fúteis. me consome a corrupção que a TV noticia. as pessoas que vivem do lixo. me faz chorar a música do rádio. me faz rir o provérbio do pára-choque do caminhão. me atropelam estes adolescentes que se fazem de adultos e estes adultos que não crescem. a minha mãe reza por mim e eu acredito mais nela que em deus - ela xinga e eu acho graça. tanta gente se fotografa sem parar e eu ainda me assusto com o espelho. tanta gente corre e ainda não decidi aonde eu quero chegar. às vezes eu tenho pena de mim mesma e tenho vergonha de dizer.

talvez a trilha sonora seria "Deus lhe pague":

Deus Lhe Pague /Chico Buarque

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Um comentário:

Lucca disse...

Adorei o que você escreveu! Colocou em palavras coisas que sinto e nunca soube dizer.
Simplesmente honesto.